Diogo Valença de Azevedo Costa¹
Na sessão ordinária de 11 de agosto de 2017 do Conselho Universitário da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), foi aprovada a concessão de outorga do título de Doutor Honoris Causa a Luiz Inácio Lula da Silva. Diante do atual cenário político do País, cabe refletir sobre o significado histórico da concessão do título a um imigrante nordestino, que se tornou metalúrgico no ABC paulista e Presidente da República duas vezes consecutivas, de 2003 a 2010, mas que agora enfrenta as duras consequências políticas do cerco conservador das elites brasileiras.
Hoje, porém, essas mesmas hostes conservadoras no Brasil procuram, por meio de uma decisão judicial e com ameaças de invasão da Polícia Federal ao espaço público da UFRB, tolher a autonomia universitária, a liberdade acadêmica e sufocar a democracia brasileira. A autocracia burguesa, com seus resquícios da ditadura empresarial-militar encrustados no judiciário, no legislativo, no executivo e nos meandros das nossas instituições, agora se apresenta em toda sua mesquinhez, violência e truculência, típicas do padrão civilizatório produtor de barbárie da Casa Grande e Senzala.
A concessão do título não apenas seria uma justiça histórica, pois a UFRB e outras universidades interiorizadas foram fundadas durante seus dois governos. Não foi apenas por isso que o título foi concedido, mas principalmente por que durante as experiências de governo do Partido dos Trabalhadores o Brasil vislumbrou, pela primeira vez, um projeto de Nação que abarcasse a maioria do povo, os trabalhadores e os diversos estratos das camadas populares. A democratização do ensino superior e maiores investimentos em ciência e tecnologia não se dissociam dessa construção de um projeto efetivamente popular de nação para os brasileiros.
As elites das classes dominantes sempre negaram a realidade da Nação à maioria das brasileiras e brasileiros, mulheres e homens negros, indígenas, pessoas LGBT, as classes trabalhadoras, os deserdados do campo e da cidade. Do povo essas elites possuem uma verdadeira aversão patológica, sendo esse o principal componente psicossocial do golpe parlamentar contra a Presidenta Dilma Rousseff. Acontece que os treze anos de governo do PT representaram um experimento crucial para a democracia brasileira e, agora, assistimos a um retrocesso em curso ao qual todos os setores democráticos devem aprender a opor uma resistência tenaz para, num momento posterior e intenso de acúmulo de forças, passar à ofensiva e retomar os direitos, as conquistas sociais e a escolha democrática da Nação, que nos foram usurpados.
Os governos do PT não chegaram a representar uma ruptura completa com a ultraconcentração classista de riquezas no Brasil e não fez saltar pelos ares as estruturas rígidas de um capitalismo dependente e selvagem. Porém, avanços importantes foram conquistados na redistribuição de renda, na democratização da saúde, da educação e no enfrentamento das desigualdades de raça, de gênero e de orientação sexual, apesar da persistência do monopólio privatista dos grandes conglomerados internacionais. Se diante desses importantes avanços, nunca antes tentados no Brasil, os setores hegemônicos da burguesia, com apoio tácito dos meios de comunicação de massa, de instâncias do poder judiciário e dos aparelhos policiais, um golpe parlamentar foi arquitetado e executado à risca com uma lógica quase inexorável, é porque ainda estamos muito longe de conquistar os requisitos mínimos de um Estado democrático de direito.
A democracia brasileira é um biombo que esconde o monopólio da representação e do poder político pelas elites das classes dominantes. O judiciário, o legislativo e executivo são algumas das faces da hidra de sete cabeças que resguardam os interesses imperialistas internalizados no Brasil, que condenaram nossas burguesias a condições eternas de sócias menores do grande capital internacional. Na verdade, essas burguesias se tornaram campeãs de uma modernização postiça e conservadora no país da cordialidade, do jeitinho e da suposta harmonia social entre explorados e exploradores ou de uma inexistente democracia racial entre negros e brancos.
É difícil caracterizar as raízes mais profundas desse conservantismo secular e intrinsecamente colonialista. Mas ele está presente na violência repressiva permanente contra qualquer possibilidade de dissidência das classes trabalhadoras. A mentalidade especulativa e comercial das nossas burguesias faz com que elas prefiram barganhar o futuro da Nação, em troca de posições vantajosas no consumo de luxo das elites brancas das classes dominantes e da ostentação de valores morais importados, sustentados pela imitação das últimas modas europeias e norte-americanas. Uma capa de refinamento que logo se desfaz pelo ódio de classes contra os trabalhadores e o povo brasileiro.
O padrão de modernidade dos países centrais, muitas vezes com um patamar de acumulação capitalista sustentado na expropriação do Terceiro Mundo e na superexploração da força de trabalho imigrante, exige um mínimo de socialização da riqueza e democratização da participação política. Com todas as distorções da vocação imperialista e colonialista desses países, que já criaram as suas próprias periferias internas, o espírito capitalista que nelas viceja permite padrões menos egoísticos, particularistas e violentos de dominação e exploração das classes trabalhadoras. Tudo isso, porém, associado à combinação seletiva da violência contra grupos específicos e da prática manipulativa dos meios de comunicação.
No Brasil, um país de capitalismo dependente, o particularismo estreito das elites burguesas é a regra, preservando a velha e carcomida mentalidade estamental das aristocracias agrárias de outrora. O que interessa é o lucro imediato, o superlucro à custa de qualquer melhoria das condições de vida do conjunto do povo brasileiro. Essas burguesias se condenam à condição de sócios menores, neocolonialistas, e sucateiam as riquezas nacionais, construídas historicamente pela classe trabalhadora, rifando a Nação a preço de banana. A desnacionalização da Petrobrás é o exemplo mais nítido que temos do caráter entreguista desse Golpe Parlamentar.
Não podemos esperar desse processo de modernização postiça e conservadora das burguesias brasileiras a solução para nossos problemas. Elas não possuem um projeto de Nação e não estão dispostas a abrir mão dos anéis para não perderem os dedos. Elas representam o verdadeiro custo-Brasil, pois nunca desejaram edificar uma infraestrutura nacional que ajudasse a romper os nexos de dependência, dois quais tiram proveito; elas não desejam educação e saúde de qualidade para o conjunto do povo brasileiro, pois assim perderiam o controle dos recursos públicos capitaneados pelo Estado.
Em suma, a burguesia brasileira nas suas mais diversas frações – que às vezes se engalfinham em lutas internas, intraclasses, na tentativa de abocanharem pedaços cada vez maiores do bolo da mais-valia – alimenta uma verdadeira repulsa sociopática ao povo brasileiro e incorpora os ideais da democracia moderna, da chamada civilização cristã e ocidental, como mais um artigo de luxo, uma exibição refinada de sua educação e valores colonizados para ostentar em ocasiões oportunas. A nossa falsa república se revela, por isso, em todas as suas dimensões nos discursos vazios do golpista Michel Temer, o atual presidente ilegal e ilegítimo.
O ódio à figura histórica de Lula deve ser compreendido nesse horizonte histórico mais amplo. As elites das classes dominantes e os setores da classe média brasileira que lhes estão subordinadas odeiam Lula, pois ele representa o povo, o trabalhador brasileiro e o nordestino de origem humilde. O povo se identifica com Lula e, por sua vez, o operário-presidente acompanha os ritmos e oscilações da consciência política da classe trabalhadora brasileira. Não vejo nenhum intelectual marxista, socialista ou comunista de peso, conseguir essa mesma proeza histórica conquistada por Lula. Se essa empatia carismática entre o povo e Lula for capaz de se mesclar a um programa político de caráter radical e popular, o Brasil das elites poderá saltar pelos ares e teremos, no futuro, uma verdadeira nação.
A Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, ao propor a concessão do título de Doutor Honoris Causa a Lula, atiçou o ódio das elites brancas das classes dominantes e seus capatazes, muitos deles travestidos de funcionários de primeira instância do Estado autocrático-burguês no Brasil. Estaremos todos juntos na UFRB defendendo a nossa autonomia universitária e o direito legítimo de homenagearmos o Presidente que fundou nossa Universidade e contribuiu para a democratização e interiorização do ensino superior no Recôncavo da Bahia.
Cruz das Almas, 17/08/2017
¹ Professor de Sociologia da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).